COTAS E UNIVERSIDADE: OUTRO OLHAR A PARTIR DA “FERIDA COLONIAL”

16:12:00PET Educação UFMT

Edir Pina de Barros*


A questão das cotas em Universidades como mecanismo de inclusão de grupos específicos – povos indígenas, afrodescendentes, ciganos e outros – há que ser pensada historicamente desde a diferença colonial, indo além da diferença étnico-racial em si.
O processo de globalização em curso tem como marco inicial a conquista da América, que se fez acompanhar da codificação das diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados a partir da idéia de raça, fato sem precedente na história mundial (Quijano, 2005; 2007: 93).  Esta idéia – e não a de cultura - constitui um dos principais eixos da dominação colonial e exerce papel fundamental no desenvolvimento da “ciência” e do capitalismo moderno a partir do século XIX.
A partir dela foram fundadas na região das Américas identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços. Outras foram redefinidas, como espanhol, português e europeu, que adquiriram conotação racial, representando o pólo superior na escala unilinear da evolução humana, situando os “Outros” como inferiores.
A expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo teve por desdobramento a elaboração teórica/cientifica da idéia de raça – o racialismo - que legitimou e consolidou a naturalização das já antigas idéias e práticas de relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus, revelando-se, desde então, o mais eficaz e durável instrumento de dominação social universal. 
A Europa também concentrou sob sua hegemonia, como parte do novo padrão de poder mundial, todas as formas de controle da subjetividade, do imaginário, das racionalidades e saberes. Assim se afirma a hegemonia epistemológica da modernidade eurocêntrica ocidental, com suas teorias, conhecimentos e paradigmas como verdades absolutas e universais (Grosfoquel, 2007: 35), “científicas”, desqualificando e silenciando outras racionalidades, outras práticas e saberes. E as universidades constituem o lócus de produção e reprodução do saber hegemônico.
Trocando em miúdos: a “diferença colonial” é a diferença historicamente construída a partir da idéia de raça – fonte de desigualdade e exclusão - que permanece nos dias atuais atravessando todas as instituições e relações sociais, incluindo as de classe, gênero, sexualidade, interculturais, étnico-raciais, etc.  Daí a necessidade de se pensar a questão das cotas desde a diferença colonial e do padrão de poder – a colonialidade -  que é constitutivo da modernidade e não derivada dela (Mignolo 2005:75). Padrão este que sobreviveu ao colonialismo, apesar da descolonização ou da emancipação das colônias latino-americanas, asiáticas e africanas nos séculos XIX e XX. E sobrevive infiltrado nas matrizes emocionais, nas subjetividades, nos imaginários dos grupos e povos submetidos a uma estrutura de dominação desde a conquista colonial.
Para referir-se a essa situação Aníbal Quijano (2005) propôs o conceito de “colonialidade do poder”, que constitui a subjetividade do “outro”, do colonizado - através da introjeção de valores e conceitos eurocêntricos naturalizados - que passa a se pensar a partir dos valores do colonizador, o que garante a reprodução de seu poder.
A colonialidade do poder se realiza através de várias dimensões: (1) a colonialidade do saber, que historicamente produziu uma geopolítica do conhecimento que subalterniza saberes, povos e culturas; (2) a colonialidade do ser, que se exerce por meio da “coisificação”, que solapa a auto-estima; (3) “colonialidade cosmogônica” (Catherine Walsh 2009:131)  que tem a ver com a  distinção binária e cartesiana entre homem/natureza, corpo/espírito, que categoriza como não modernas, “primitivas” ou “pagãs” as relações espirituais e sagradas que põe em interação os aspectos materiais e imateriais da relação humana com o mundo, com os ancestrais. Assim desqualificam as cosmovisões, as filosofias, religiosidades, princípios e sistemas de vida dos grupos sociais e povos subalternizados.
A construção de cada Estado-nação das Américas e de sua identidade nacional se deu através de processos de homogeneização, da destruição e/ou invisibilização de línguas, saberes, cores, crenças e sensibilidades de povos indígenas, negros, ciganos, dentre outros.
Uma Universidade – no verdadeiro sentido da palavra – há que pensar a questão das cotas raciais a partir dessa visão crítica e não a partir de conceitos  ancorados em legados etnocêntricos que têm a sua gênese no poder colonial e na territorialidade européia.  Há que se visibilizar os fundamentos mais profundos da exclusão e suas causas. E isto certamente impõe aos intelectuais e formadores de novas gerações a revisão de seus conceitos, suas práticas e representações, histórica e culturalmente localizados no âmbito da colonialidade.
Há que se questionar a racialização, a subalternização, os padrões de poder. E intervir e atuar sobre a matriz da colonialidade visando a transformação das estruturas, condições e dispositivos de poder que mantém a desigualdade, a racialização, a subalternização e a inferiorização de seres, saberes e modos, lógicas e racionalidades. Tal questionamento há que ser feito com a participação daqueles que sofrem a histórica submissão e subalternização e dos movimentos sociais, que lutam pela transformação radical das estruturas, instituições e relações de cunho colonialista. Uma transformação não só para os grupos e povos culturalmente diversos, senão para o conjunto da sociedade.
Tal projeto desafia as fronteiras acadêmicas e institucionais e os limites epistemológicos sempre atravessados por relações de poder. E requer uma visão pluralista, não etnocêntrica e renovada sobre o “outro”.
Construir tal leitura crítica requer, na radicalidade, transgredir, interromper e desconstruir a matriz colonial ainda presente no modelo neoliberal e na forma de pensar a Universidade. Ou seja, passar da resistência à insurgência para criar outras condições de poder, saber, ser, estar e viver, que se distanciem do capitalismo predatório e sua única razão.
Pressupõe a articulação de seres, saberes, modos e lógicas de viver dentro de um projeto que aponte para a possibilidade de não só co-existir – tolerando-se mutuamente - mas de conviver numa nova ordem que admita a incompletude das culturas e seus saberes e a possibilidade de relações respeitosas e complementares entre elas. Esta é a visão e o projeto que há nas novas Constituições da Bolívia e do Equador.
A questão das cotas raciais em Universidades não admite a despolitização das relações étnico-raciais e de suas raízes mais profundas. E nem ignorar a “ferida colonial” aberta nas profundezas dos povos da América Latina e das vitimas do tráfico através da colonialidade do poder, de sua racialização. Seu produto perverso, ao nível intra-psíquico é a “identidade negativa”, a ruptura da auto-estima, precipitado histórico da introjeção de valores impostos pelo colonizador.
Para tanto, é necessário descolonizar os próprios conceitos e recolocá-los em contexto; superar a arrogância totalitária que desqualifica o Outro e/ou o paternalismo complacente que trata a diferença como parte de uma ordem natural.
Esse seria um caminho que tornaria possível a análise social para subsidiar formulações de políticas públicas que possam vir a responder às necessidades de justiça social reclamadas pelos grupos e povos subalternizados.
Nessa perspectiva não cabe o cientificismo – forma perversa de etnocentrismo - e, muito menos o entendimento da Universidade, sobretudo na América Latina, como um  lócus onde se produz e reproduz saberes hegemônicos. Há que se problematizar a própria formação enraizada em estereótipos e identificar/rever os seus legados etnocêntricos, as concepções racialistas.
Como apontou Todorov (1993:121), “o melhor resultado de um cruzamento de culturas é muitas vezes o olhar crítico que volvemos para nós mesmos, e que não implica, de forma alguma, a glorificação do outro”. E nem abrir mão se si, mas admitir a diversidade epistêmica que comporta o patrimônio da humanidade.

Referências biblioigráficas:
Quijano, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. En libro: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Edgardo Lander (org). Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. setembro 2005. pp.227-278.
MIGNOLO, Walter. La idea de América Latina: la herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa Editorial, 2007.
MIGNOLO, Walter. Histórias Globais/projetos Locais. Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. SP, Martins Fontes, 1993.
Walsh, Catherine. Interculturalidad, Estado, Sociedad. Luchas (de)coloniales de nuestra época, Quito: Universidad Andina Simón Bolívar/AbyaYala, 2009.
WALSH, Catherine. Interculturalidad Crítica y pedagogia de-colonial: in-surgir, re-existir y re-vivir.USMA, Revista “Entre palavras”, Faculdad de Humanidades y Ciências de La Educacíon, n. 3- n. 4, La paz, Bolivia, 2009: 129-156.
walsh , Catherine. “Raza”, mestizaje y poder: horizontes coloniales pasados y presentes. Crítica y Emancipación, (3): 95-124, primer semestre 2010.
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Edir Pina de Barros é professora aposentada do Departamento de Antropologia da UFMT. Doutora e pós-doutora em Antropologia Social pela USP

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